Qta do Rossio, S. Miguel d'Acha
Varykino. Jivago tem agora tempo para se dedicar a escrever algumas notas sobre assuntos vários.
"Que felicidade esta de trabalharmos para nós mesmos e para os nossos, da manhã até à noite, de construirmos um abrigo, de cultivarmos a terra para dela tiramos as nossas subsistências, identificar o nosso próprio mundo, como Robinson, de imitarmos Deus criador do Universo, e de renascermos, de nos renovarmos em cada hora que passa, como um filho que acaba de sair das entranhas da mãe.
Quantos pensamentos, quantas novas reflexões surgem no espírito enquanto as mãos estão ocupadas no trabalho físico, muscular, de cavar a terra ou de pregar um prego: ou então, quando decidimos tarefas razoáveis, de fácil solução que nos enchem de alegria e de orgulho; e ainda: quando num trabalho ininterrupto de seis horas conseguimos reduzir a vigamento um possante tronco de árvore ou, sob um céu nu que nos queima com seu hálito benfazejo, cavamos a terra… E mesmo que esses pensamentos, essas intuições, essas metáforas não sejam logo transportas para o papel e, porque fugazes, sejam esquecidas, não constituiu isso uma perda mas antes houve um ganho. E tu, anacoreta da cidade, obrigado chicotear tua imaginação e teus nervos enfraquecidos com o tabaco e o café forte e negro, tu ignoras o mais poderoso de todos os narcóticos: a necessidade real e uma saúde de ferro.
Não pretendo ir mais longe, não proponho nem a renúncia de Tolstoi nem o regresso à terra, não penso mesmo em corrigir o socialismo graças a uma nova solução do problema agrário. Verifico apenas um facto sem pretender erigir em sistema aquilo que me aconteceu a mim. O exemplo de cada um de nós é sempre discutível e não permite que tiremos conclusões de ordem geral. A nossa vida material é feita de elementos muito diversos. Só uma parte reduzidíssima da nossa subsistência - os legumes e as batatas - provém do trabalho das nossas mãos. O resto promana de outras fontes." (p. 299-300)
Sempre que regresso a S. Miguel, penso em Varykino, descrito por Jivago, descrito por Boris Pasternak. O branco da neve pelo verde da erva. De resto, o mesmo sentimento.