domingo, 26 de novembro de 2023

Da Arte e das Tradições que nos pacificam



Um fim de semana extraordinário (11-12 de Novembro de 2023). A música foi o principal elemento agregador de todas as vontades participantes nos eventos culturais e artísticos deste fim de semana, em S. Miguel d'Acha, uma pequena vila da Beira Baixa onde todos, ou quase, sabem cantar bem, vem de nascença, que se traduz, entre outras manifestações, no Grupo de Cantares Tradicionais da Associação para a Defesa do Património Cultural (ADEPAC).
S. Miguel pode orgulhar-se, mais uma vez, de ter uma iniciativa cultural de tão elevada qualidade.

No sábado, pelas 11H00, teve lugar  a apresentação do Cancioneiro da Música Tradicional de S. Miguel d'Acha, da autoria de Joaquim Gonçalves e José Ramos Alexandre. A história da música popular de S. Miguel d'Acha e o acervo das músicas populares originárias e cantadas nesta terra. Uma obra de fôlego. Uma obra que preserva a memória do passado e, em muito, ainda a memória do presente porque viva continua a ser a manutenção das tradições em que estes cantos são o centro desses enventos tradicionais mas que sem ela, necessariamente (?) tudo parece levar a crer que assim seja, corria o risco de se perder, pelo menos em boa parte.
Com a publicação do Cancioneiro hoje podemos ter a certeza de que esta herança, o património imaterial desta comunidade, está aí para os nossos netos, obra que os faz e fará ter orgulho dos seus antepassados que criaram estas melodias emocionantes e únicas, fruto das suas vivências de infância, de trabalho, das festas ou da religiosidade. Mérito dos autores do Cancioneiro.


À noite, assistimos ao concerto "A música Tradicional em S . Miguel de Acha". 
"O programa deste concerto, organizado pela ADEPAC, no âmbito lançamento do Cancioneiro da Música Tradicional de São Miguel d'Acha tem em vista a apresentação ao público de algumas das modas da nossa terra. Muitas delas são, aliás, frequentemente cantados e difundidas pelo Grupo de Cantares Tradicionais de São Miguel de Acha, mas outras foram sendo musicalmente trabalhadas por vários autores.

Daí que a escolha e ordenação do programa tenha recaído em canções cujas melodias e temas já foram objeto de elaboração e tratamento musical, nas variadas perspectivas encontradas, por forma a que com esta metodologia de apresentação, o público possa perceber as muitas abordagens musicais possíveis sobre temas idênticos e verificar que a música tradicional é passível de merecer a mesma consideração que a chamada música erudita.

Assim, incluem-se, desde logo, arranjos de Fernando Lopes Graça (para piano solo, piano quatro mãos, canto e piano, vozes e orquestra) de algumas modas que ele próprio recolheu na nossa terra, arranjos de Jorge Croner de Vasconcelos (para canto e piano, de duas modas anteriormente também aqui recolhidas por Constantino Varela Cid), bem como vários arranjos de um conterrâneo nosso, Joaquim Gonçalves (para vozes e piano e/ou instrumentos) e de seu filho Diogo Gonçalves (canto e piano e vozes e instrumentos), de canções igualmente recolhidas em  S. Miguel.

E tendo em vista a consecução destes objetivos, o Programa executado por conhecidos e credenciados intérpretes nacionais (um conjunto vocal de vozes iguais, a soprano Maria João Sousa, os pianistas Leonor Cardoso e Paulo Oliveira, um ensemble instrumental - sopro e cordas), além do Grupo de Cantares Tradicionais de S. Miguel de acha, de ACEPAC, também sobejamente reconhecido no âmbito dos executantes de música tradicional na região das Beiras, atualmente dirigido por Eduardo Gonçalves.

Por fim, é devida uma palavra de agradecimento à Paróquia de São Miguel de Acha, na pessoa do P. Martinho Lopes Mendonça, pela disponibilidade manifestada para a realização deste Concerto na Igreja Matriz de São Miguel de Acha."

A missa de domingo foi manifestação de elevada espiritualidade em que Bach e Schubert nos ajudaram a sentir toda a felicidade que pode resultar na nossa mente e no nosso coração quando à meditação, celebração, e pedido de um mundo melhor, podemos acrescentar o extraordinário engenho humano criador desta música.

Gratidão enorme por nos terem proporcionado estes momentos. Por este tempo em que, afinal, acontecem milagres que vêm da Arte e da Paz. Podemos sonhar com um mundo civilizado em que a Arte nos reuna como pessoas interessadas na Cultura e na Paz. Podemos presenciar a diversidade das pessoas na diversidade das interpretações e como a música pode ser extraordinária quando essa mesma música é tocada e cantada pelo Grupo de Cantares, pela orquestra ou apenas pelo piano numa continuidade de profundidade emocionante entre a "Encomendação das almas", canto por vozes femininas, e os "Martírios", com piano a quatro mãos com Leonor Cardoso e Paulo Oliveira e arranjo de F. Lopes-Graça.

Este momento inesquecível ficou a dever-se à ADEPAC, a todos os patrocinadores, a todos os que colaboraram, a todos que gostam desta terra tão querida e maravilhosa. Tantos amigos. Tão boa gente. Uma Arte que enleva o espírito e pacifica a mente foi o que senti neste fim de semana, na minha terra, S. Miguel d'Acha.




quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Beirã




Quero ir à tua terra, beirã
Onde correm fios de água
Entre goivos e hortelã
Ensina-me a distinguir
O melro da cotovia
Nunca soube o que era ouvir
O galo a anunciar o dia

Tília trevo e açafrão
Erva pura pimentão
Louro salsa e cidreira
Urze brava e dormideira

Vou pedir para me levares
Ao teu mais secreto atalho
Para lá de hortas e pomares
Entre pólen e orvalho

Revela-me os teus segredos
As geleias e os licores
Quero contigo aprender
Cheiros ervas e flores

Tília trevo e açafrão
Erva pura pimentão
Louro salsa e cidreira
Urze brava e dormideira

Vai fiando a tua roca
De adágios e tecidos
Quero ouvir da tua boca
Os assombros mais antigos

Sou um pobre cidadão
Perdi o fio de mim
Um bichinho do betão
Que nunca viu o alecrim

Tília trevo e açafrão
Erva pura pimentão
Louro salsa e cidreira
Urze brava e dormideira

Carlos Tê/Rui Veloso


quarta-feira, 29 de março de 2023

sábado, 7 de janeiro de 2023

A minha Varykino


Qta do Rossio, S. Miguel d'Acha


Varykino. Jivago tem agora tempo para se dedicar a escrever algumas notas sobre assuntos vários.

"Que felicidade esta de trabalharmos para nós mesmos e para os nossos, da manhã até à noite, de construirmos um abrigo, de cultivarmos a terra para dela tiramos as nossas subsistências, identificar o nosso próprio mundo, como Robinson, de imitarmos Deus criador do Universo, e de renascermos, de nos renovarmos em cada hora que passa, como um filho que acaba de sair das entranhas da mãe. 
Quantos pensamentos, quantas novas reflexões surgem no espírito enquanto as mãos estão ocupadas no trabalho físico, muscular, de cavar a terra ou de pregar um prego: ou então, quando decidimos tarefas razoáveis, de fácil solução que nos enchem de alegria e de orgulho; e ainda: quando num trabalho ininterrupto de seis horas conseguimos reduzir a vigamento um possante tronco de árvore ou, sob um céu nu que nos queima com seu hálito benfazejo, cavamos a terra… E mesmo que esses pensamentos, essas intuições, essas metáforas não sejam logo  transportas para o papel e, porque fugazes, sejam esquecidas, não constituiu isso uma perda mas antes houve um ganho. E tu, anacoreta da cidade, obrigado chicotear tua imaginação e teus nervos enfraquecidos com o tabaco e o café forte e negro, tu ignoras o mais poderoso de todos os narcóticos: a necessidade real e uma saúde de ferro. 
Não pretendo ir mais longe, não proponho nem a renúncia de Tolstoi nem o regresso à terra, não penso mesmo em corrigir o socialismo graças a uma nova solução do problema agrário. Verifico apenas um facto sem pretender erigir em sistema aquilo que me aconteceu a mim. O exemplo de cada um de nós é sempre discutível e não permite que tiremos conclusões de ordem geral. A nossa vida material é feita de elementos muito diversos. Só uma parte reduzidíssima da nossa subsistência - os legumes e as batatas - provém do trabalho das nossas mãos. O  resto promana de outras fontes." (p. 299-300)

Sempre que regresso a S. Miguel, penso em Varykino, descrito por Jivago, descrito por Boris Pasternak. O branco da neve pelo verde da erva. De resto, o mesmo sentimento.