segunda-feira, 30 de abril de 2018

Mistérios da Páscoa



1. Em S. Miguel d' Acha, onde O domínio do sagrado merece aqui uma menção particular, na Quaresma, há tradições que continuam a ser realizadas anualmente: a ladainha e o terço cantado.
Em S. Miguel de Acha - Memórias da cultura tradicional, António Milheiro, descreve o terço cantado com pormenor. Também aqui (Tradições da Quaresma - «Terço cantado» em São Miguel de  Acha, do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.III, Ed. Círculo de Leitores), encontra referência a essa tradição.

Tanto uma como outro são realizados pelos homens*. De facto, são os homens que cantam, na rua, o mantra "rogai por nós", como na ladainha, ou outros mantras, como os do terço cantado...
O costume tem séculos e adequa-se perfeitamente às mais modernas formas  de meditação e de oração e, felizmente, ainda persiste esta forma de meditação, mantendo uma elevada espiritualidade que existiu desde sempre ente os cristãos. Todos os anos pela Quaresma se retoma esta forma de meditar, através do canto repetitivo de frases simples que narram os acontecimentos de um evento excepcional da história que teve lugar há dois mil anos.

As tradições, onde podemos encontrar formas muito antigas de meditação e oração, como as tradições dos mistérios da Páscoa que tem grande implantação nesta região durante a Quaresma, em S. Miguel d'Acha, são os mantras da ladainha e do terço cantado, uma preciosidade nesta matéria que leva as pessoas, crentes, menos crentes ou não crentes a marcarem a sua presença.

Como refere John Main, "o mantra é uma tradição antiga, cujo objectivo é aceitar  o convite que Jesus nos dirige. Descobrimos o mantra na Igreja cristã primitiva. Podemos encontrá-lo no Pai-Nosso, que era uma série de frases rítmicas no original aramaico. Descobrimo-lo igualmente na tradição ortodoxa da Oração de Jesus, a oração que Jesus recomendou." ( A palavra que leva ao silêncio, p. 74)

Em S. Miguel, estas formas tradicionais de meditação e oração, que conheço minimamente e em que participo sempre que posso, enquadram-se num contexto de mindfulness onde obtenho a devida recompensa: a paz e tranquilidade  no final de cada evento/sessão.
Para além da oração implícita nestas tradições, tenho vindo a descobrir e compreender, numa perspectiva de modernidade e não apenas de tradição,  que estamos perante algo que as pessoas, em busca de espiritualidade, estão a recuperar: a prática da meditação. O que é interessante é que  nestas tradições temos, igualmente, formas de meditação com objectivos semelhantes às existentes em  diversas culturas e em contextos diferentes.

2. A TVI decidiu fazer uma reportagem sobre estes eventos. É de reconhecer o interesse. Porém, o produto acabado não correspondeu a uma real informação sobre estes eventos. Sabíamos do estilo das reportagens do autor, que se calhar tem razão de ser nas peças com políticos que se autoridicularizam, mas pensava, ingenuamente, que desta vez seria diferente por se tratar de um evento diferente.

A primeira reportagem,  No país da Quaresma: cantar e rezar na rua , 4 Março, refere o seguinte:
"A caminho da Páscoa, lembramos o costume popular das ladainhas. Numa freguesia de Idanha-a-Nova, os homens ainda invocam os nomes dos santos pelas ruas. Quem quiser pode ir ver, até porque é mais uma tradição sem futuro garantido...
Uma reportagem de Victor Moura-Pinto, com imagem e edição de Francisco Ferreira. "

No Sábado, 31 Março, volta a ser versado o tema, "Tradições de Quaresma carregam a cruz do interior despovoado", em que também se refere o terço cantado em S. Miguel. "Escondido do Portugal urbano, jovem ou litoral, há um outro país que teima em existir. E ele sai à rua na Quaresma, como fez durante séculos, para exibir a riqueza cultural da piedade popular. Em Trás-os-Montes, acontecem as encomendações das almas. Na Beira Interior, resistem as procissões dos penitentes.
Mas qual o futuro destas tradições seculares, agora que em aldeias e vilas da metade oriental do país escasseiam crianças para ir à escola? Irão os costumes profanos da religiosidade portuguesa sobreviver num mundo hostil, à sombra turística de municípios ou sob a mudança das mentalidades?"
"Penitência" é uma reportagem da autoria de Victor Moura-Pinto, com imagem de Francisco Ferreira e edição de imagem de Pedro Guedes."

3. António Milheiro, uma referência na retoma destas tradições, vem no boletim da ADEPAC, de Março/18, explicar o que se passou:
"...Nessa mesma noite filmaram as Ladainhas, ficando de voltar no dia seguinte para  filmarem o Terço. Combinamos uma entrevista para antes do Terço, junto à capela. Nessa noite ou na seguinte, a TVI mostrou depois do noticiário um extracto do que tinham filmado e da entrevista, ficando verdadeiramente aterrado com o que transmitiram. Mostraram um pouco da nossa terra, menos aquilo que julgávamos ser o objectivo da reportagem, com a agravante de terem retirado de fora do contexto uma frase da entrevista que adultera tudo o que lhes disse sobre este tipo de tradições. Ao ser questionado sobre os motivos que levavam as pessoas a participarem, respondi que, (cito de memória) umas o faziam por uma questão de fé e outras para ajudarem a manter as tradições e que havia ainda os que não vêm e acham que os que participam são apenas meia dúzia de velhos (entre aspas) feitos parvos. Da resposta que lhes dei transmitiram apenas: “OS QUE PARTICIPAM SÃO APENAS MEIA DÚZIA DE VELHOS (ENTRE ASPAS) FEITOS PARVOS”, adulterando assim por completo o  sentido da frase, Outras inexactidões foram ainda proferidas no documentário, a que sou alheio. Resta-me acrescentar que a comunicação social, no caso a TVI, prestou um mau serviço à cultura e ofendeu todo um povo cioso das suas ancestrais tradições."

4. Sim, há  a desertificação... A desertificação vai acabar com estas manifestações como de resto vai acabar com as populações  destas regiões. Não há tradições sem pessoas não há espiritualidade sem pessoas, nem escolas sem alunos, nem trabalho sem empresas, nem público para as TV, nestas paragens ou noutras.
De modo que a questão é muito mais complexa do que comer peixe ou carne na Páscoa, dos jovens terem os deveres da escola para fazer ou de quando acabarem os velhos já não haver quem mantenha as tradições. O que, aliás, nem sempre é negativo. Ainda bem que algumas tradições não se mantiveram... E como dizia Keynes "a longo prazo estaremos todos mortos".
A desertificação humana, que, esperemos,  a Missão designada pelo XXI governo possa vir a começar a reverter (como fez noutras áreas!) é muito mais complexa do que as tradições da Quaresma  do Victor Moura-Pinto.
Temos neste blogue feito a apologia das vantagens que podem haver, da qualidade de vida que pode haver, num pais equilibrado em termos territoriais. No entanto, as políticas têm funcionada num perspectiva centralista cada vez maior. Surgem de vez em quando algumas rábulas, como o caso do Infarmed, como se isso viesse resolver alguma coisa de substancial.
Quando começaram a acabar com as escolas de pequena dimensão, em  nome não sei bem de que progresso educativo, como acabaram com a escola de S. Miguel, com 15 alunos, contra a vontade dos pais, como aqui denunciei,  quando a escola continuou noutras localidades com 4/5 alunos, deviam ter pensado na desertificação...
E assim sendo, são tradições "sem futuro garantido", mas quem ou o que é que o tem? 
Também esta preocupação desaparece quando se participa nestes "mistérios", porque vivê-los profundamente é o que interessa. O resto é para preocupação dos políticos com "missão" mas sem "visão" de futuro.

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*A participação das mulheres traduz-se fundamentalmente no arranjo dos "nichos"e noutra tradição: a "encomendação das almas".
**  Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI); Despacho n.º 3395-A/2016.